quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Lembranças...

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Lembro-me do ardina.
Lembro-me de que nunca o ouvi a vender jornais.
Lembro-me de quando chegava a casa a meio da noite, alugada num 3º andar sem elevador de um pequeno prédio decente.
Lembro-me de que todos sabiam a que horas tinha chegado e o comentavam entre risinhos...
Viviam sós. Não tinham família nem nunca lhes vi visitas.
Entrava na rua a cantar o fado, o mais alto que a voz deixava. Cantava e cambaleava... e só cantava se cambaleasse... e todos sabiam.
Lembro-me de que era muito pequena e que me acordava a meio da noite; lembro-me de abrir os olhos e dizer à minha mãe que gostava tanto de ouvir o Ribeirinho a cantar... lembro-me de que ela me dizia que a Elvira quase não saía de casa por vergonha... lembro-me de não compreender porquê.
Já morreram ambos, há muito.
Talvez nem nunca imaginassem que alguém os lembraria muito mais tarde. Talvez nem achassem que alguém teria motivos para os recordar, com carinho, muito mais tarde... nem eu sei se me lembraria o ardina... não fosse ele acordar-me a meio da noite, quando chegava a cantar o fado.
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21 comentários:

  1. São tão inverosímeis as coisas da infância que nos recordamos. Esta semana lembrei-me que a minha avó costumava pôr as gaiolas dos pássaros penduradas num prego à janela, para que eles pudessem apanhar sol e ar fresco.
    As lembranças são pedaços de nós escondidas, quando menos esperamos aparecem para nos deslumbrar.

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  2. Gata,

    É isso mesmo!
    Muitas vezes dou por mim a pensar que nem é pelos grandes actos que costumo recordar certas pessoas mas exactamente por pequenos detalhes que me saltam à lembrança, aparentemente a propósito de nada ou coisa nenhuma.
    É disso que também é feita a nossa vida afinal, de pequenas coisas e de pequenas grandes impressões que deixamos nos outros.

    :)

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  3. E é essa impressão que deixamos nos outros que diz ao mundo o que somos.

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  4. No caso do ardina, tu vê-lo como o bêbado que cantava fado quando cambaleava, e não como o senhor que vendia jornais.

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  5. Não sei se vos acontece o mesmo mas, agora que estou com o Lucas mais tempo, revejo tantas situações passadas dos tempos em que tinha a idade dele.
    Lá no meu canto já falei das nossas idas ao estádio ver o Futebol e como me lembro de ter feito o mesmo (ainda o faço) com o meu pai.
    Mas há muitas mais situações que ao vê-lo me saltam da memória, surpreendendo-me com o que sai lá do sótão.

    :)

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  6. O ardina chegava bêbado a casa e por isso cantava o fado? Bom, sempre é melhor cantar o fado do que lhe dar para a violência...

    Também me lembro de muita gente da minha rua de infância, onde brincava horas a fio, nas férias grandes de verão! Aquilo é que eram fééééériiiiiaaaaasssss!!! :)))

    Beijooooocas!

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  7. … por vezes é tão bom recordar…

    Beijinhos,
    FATifer

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  8. Já morreram há muito... A nossa infância fica mais longe com a noticia de cada morte…

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  9. Gata,

    Ainda que tentemos desvaloriza-lo, a impressão que deixamos a cada momento nos outros tem (pelo menos para mim) bastante importancia :)

    Vejo o ardina apenas por um detalhe de uma vida que deve ter sido feita de tantos mais. Muitos que, mesmo que quem, como eu, morava próximo, nunca deve ter percebido.

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  10. The one,

    Recordar é a maior prova de que existimos :)

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  11. Paulo,

    E o nosso sótão consegue surpreender-nos tanto!
    Há coisas que nem consigo perceber a propósito de quê de lá saltaram e a propósito de quê lá ficaram guardadas tanto tempo. Aparentemente não me faziam falta.
    Aparentemente apenas.

    :)

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  12. Teté,

    Acho que nunca houve outro tipo de violência naquela casa. A piela dava-lhe apenas para cantar o fado. lol. Era um casal muito pacato. Pessoas muito simples e muito educadas, pelo menos é a ideia que tenho deles.

    Uma vez pareceu-me que as férias da tua infância eram na mesma zona das minhas, será?

    Beijos :)

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  13. FATifer,

    Já o outro dizia que recordar é viver... :)

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  14. LBJ,

    A nossa infância fica mais longe e a nossa vida fica mais pobre com a notícia de cada morte. Mesmo dos que mal conhecemos.

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  15. Sabes, Maria… às vezes não te sentes assim um pouquinho … envelhecida?
    - Envelhecida? Queres dizer… assim como cansada, é isso?
    - Pois…
    - Sim, às vezes… mas porquê?
    - Ora, nada de importante… Os meus parceiros do poker, sabes… lembraram-me de me colocar ontem uma alcunha…
    - Oh, João… e não me digas que ficaste aborrecido?
    - Não é bem aborrecido…
    - Então… o que é?
    - Sabes… fizeram-me sentir como se fosse mais velho…
    - Velho? E qual foi a alcunha, pode saber-se?
    - … Múmia… chamaram-me Múmia, imagina.

    ( Silêncio )

    - João…
    - Sim, querida…
    - Quantos anos tens?
    - Eu… creio que 89… ou 88, às vezes não tenho bem a certeza… porquê?
    - Nada, nada… estava só a pensar nesses teus amigos… quem são eles?
    - Os amigos? Ora, tu conhece-los… o filho do Adriano, o filho do Afonso, o filho do Mário, o filho do teu primo Ricardo, o neto do Paulo…

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  16. Lindo, o teu texto faz-nos, de facto pensar as pequenas coisas que nos levam de volta à infância: o fado, um som, um cheiro... Passava eu, um dia destes, por um r/c de janelas escancaradas e veio o cheiro das ervilhas com ovos, trouxe-me de imediato à memória a minha avó e eu, que nunca queria almoçar com ela no dia das ervilhas, apeteceu-me tanto comer um pratinho das ditas.

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  17. Entremares,

    Como sempre, um texto lindo.

    Fizeste-me imaginar que as nossas memórias devem tornar-se muito mais tristes e pesadas quando chegarmos a momentos desses... de quando quem connosco se relaciona já são apenas os filhos ou os netos de quem já tratámos pelo nome...
    As memórias de criança devem ser bem mais doces :)

    Obrigada pela partilha :)

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  18. Catwoman,

    Obrigada :)

    A minha memória também é muitas vezes estimulada pelos cheiros.
    Há pessoas que não vejo há muitos anos, que pouco ou nada considero que signifiquem para mim e basta um perfume ou um outro cheiro partilhado para mas trazer de novo à memória. E é bom!
    Um cheiro, um som, um sorriso. Por vezes é só o que temos de alguém e, por isso, também o muito que temos de alguém!

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  19. Tb tenho muitas lembranças :). E com elas, todos os sentimentos que afloraram na altura. Infelizmente são mais as más que as boas...

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  20. Vani,

    Acho que o termos mais ou menos "más" do que "boas" depende do estado de espirito com que as olhamos... há algumas menos agradáveis que, até elas, nem que seja pela fase em que foram ou da pessoa que foram, recordo com carinho e com saudade.

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