Joana entrou no carro e arrancou, sabia que ele a apanharia até porque não lhe apetecia andar depressa, mesmo sabendo que aquele carro não tinha sido feito para andar devagar. Poucos minutos depois Miguel já a ultrapassara acenando-lhe adeus. Quando chega a casa está a lareira acesa e dois copos de vinho lado a lado no chão… vai ser uma longa conversa…
Miguel entra na sala com um prato com queijos. Joana sorri e estende-lhe um copo.
- … tantos mimos, estás mesmo carente homem!
- Carente? Tens noção que o que dizes é paradoxal?
- E tu tens noção que te conheço? Quando mais queres atenção mais atenções tens, sempre foste assim…
- …
- Olha, aí tens um bom princípio de resposta à pergunta que dizes que te atormenta. Sim, porque se fosse a tua história que procuravas, bastava-te abrir os álbuns de fotografias…
- Pois, como disseste a pergunta está noutro plano… vim pelo caminho a pensar no que disseste e tens razão.
- Claro que tenho razão! O que me espanta é ter de ser eu a dizer-to… a angústia que te vi no olhar…
- Sim… não há motivo… eu sei… mas talvez por isso mesmo…
Estavam ambos sentados no chão em frente à lareira, copos na mão enquanto ia comendo os pedaços de queijo que ofereciam um ao outro.
- Se isto fosse um daqueles filmes românticos, lamechas, e fosses tu uma donzela sonhadora, dizia que a resposta que te chegaria seria: “és a minha outra metade” e pronto!
- Pois mas..
- Mas não és uma donzela sonhadora, és um lindo homem que não devia ter essas dúvidas existenciais… ou pelo menos não devia deixar que elas o afectassem a este ponto, pois tê-las pode não só ser inevitável como saudável.
- Com uma mulher assim não preciso de psicólogo, na verdade.
- Engraçadinho, não fujas à questão…
- Não estou a fugir…
- O que motivou a tua inquietação?
- …
- … diz lá que sei que já analisaste e sabes muito bem a causa.
- …
- … não me digas que ainda é por causa daquela criança?
- … sim…
- Oh Miguel, tu fizeste tudo o que podias por aquela menina, tu és um excelente cirurgião! Não havia mais nada que pudesse ser feito, todos os teus colegas concordaram…
- Havia sim! Eu podia…
- Miguel! Olha para mim!
- …mas
- Tu és apenas um ser humano, dotado de um dom especial e muito talento mas humano ainda assim.
- Joana… ela…eu…
- Miguel, já te disse para não te culpares!
- Eu sei mas sabes que detesto errar.
- Mas tu não erraste homem! Todos os teus colegas confirmaram que fizeste tudo o que podias.
- Mas não foi suficiente…
- Miguel, eu sei que nunca te tinha morrido ninguém na mesa de operação mas…
- Mas tenho de aceitar, não é? As pessoas morrem…
- Por mais que te custe sim, é verdade…
- Oh Joana mas tu não olhaste nos olhos dela…
- Mas vi os olhos da mãe que, mesmo com toda a dor ainda me agradeceu porque tu tinhas feito o possível para salvar a filha. Ela estava muito mal… aliás só de pensar nisso até fico mal disposta.
Miguel coloca o copo vazio ao pé do copo de Joana que estava no chão perto do prato e abraça-a. Ficam os dois a olhar as chamas…
FATifer