segunda-feira, 24 de novembro de 2008

Uma vida (III)

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Acabara de almoçar e chegara-se à janela.
O mesmo gesto de cada inicio de tarde que mantinha ainda hoje.
Já lhe fugira a juventude mas não o lamentava. Não tinha porque o lamentar.
Tinha sido feliz!

Conheceram-se naquela casa. A casa dos seus pais. Era quase uma criança e amara-o no primeiro olhar.
Amara-o num olhar e na certeza de que nunca ninguém mais lhe ocuparia o coração.
Ninguém nunca a conhecera tão bem. Nunca ninguém o conhecera tão bem.
Sabiam-se com o olhar. Sabiam-se com a pele. Sabiam-se em cada toque e em cada gesto.
Ele dera-lhe tudo o que uma mulher poderia ambicionar, tudo.
Amaram-se por décadas.
Ele fora-se e desde esse dia que o chorara todas as tardes para, no final, enxugar as lágrimas, cozinhar o jantar, recolher-se no luto, comer em silêncio e no escuro da noite anestesiar a dor, até à manhã seguinte.
Desde o dia em que se fora que o chorara todas as tardes. Só e apenas à tarde, ao assomar-se à janela e ao lembrar-se de momentos...
Agora chorava ao assomar-se à janela... lembrando-se do tempo em que não chorou. Em que não tinha motivos para chorar... em que Ele não lhe tinha deixado a falta para sentir...
Já lhe fugira a juventude mas não o lamentava.
Tinha vivido a melhor vida possível. Tivera luxo, prestigio e Amor.
Tivera tudo o que escolhera ter.
Fora tão feliz com Ele... e sempre lhe pertencera. Pertenceram-se.
Viveram metade de um tempo, metade de um espaço, em duas metades de um ser completo. Duas metades de felicidade dividida e em que sempre se pertenceram.

No caminho que olhava agora, quase o vira afastar-se. O ritual de quase todas as tardes e de quase toda uma vida. Sabia onde ia, sempre o soube.
Médico. O melhor partido da melhor família da região e seu pai não hesitara em aumentar o seu já farto património.
Fora-se. Finalmente. Também ele se fora mas por ele não chorava. Não lhe dera quase nada. Dera-lhe quase tão somente o que nunca soubera que, por décadas, lhe tinha dado: as tardes de quase todos os dias.
Libertara-a.
Todas as tardes olhava o caminho nesta janela, onde o esperava afastar-se... Depois, descia ao quarto dele e com Ele, entre lençóis de linho, consumava o seu Amor.
Trabalhara naquela casa durante décadas e guardara todas as tardes para dois...
Nunca casara e, Ele sim, fora unicamente seu.
Amaram-se e conversaram até ao último dia da sua vida.

Chorara-o em cada tarde desde que Ele se fora mas a partir de agora, que ele já não estava... já poderia chora-lo sem hora marcada.
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31 comentários:

  1. …hum … li de um fôlego e… mais que mereces, por isso aqui fica:

    SUBLIME!!!

    Desculpa gritar mas quando disseste que não sabias se merecerias do 3º “!” foste no mínimo modesta!

    Adorei também o final à Crest (como tu própria o apelidaste), resta saber se ele (Crest©) o reconhecerá como tal… (acho que se não o fizer será só mesmo para não concordar contigo).

    É por textos como estes (e mais) que disse (e repetirei sempre que me apetecer) que, é uma honra partilhar este espaço contigo ;)

    Beijinhos,
    FATifer

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  2. FATifer,

    Agora fiquei babada e sem lenços à mão!

    Diz lá a verdade, achaste que estava a falar de um no inicio e não do outro?
    Consegui?
    ;)
    Era esse o que referia como final "à Crest", lol.

    Amigo, uma honra partilhada :)

    OBRIGADA (desculpa gritar mas fiquei contente com o que escreveste :)

    Beijos :)

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  3. Conseguiste pois! E por isso mereceste o 3º “!” (além do 3º “sublime”) ;)

    Uma vénia,
    FATifer

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  4. Pax, parabéns!
    A vida é feita de momentos, este é sublime.

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  5. Paulo,

    A vida também é feita destes carinhos :)

    Obrigada e beijos :)

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  6. Mais uma vez excepcional!!
    Parabéns Pax!!

    E obrigada pela partilha ;)

    Beijinho
    P@pinh@

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  7. É para mim, apenas o exemplo de uma história feliz, uma história muito simples e por isso bela e virtuosa :) Um exemplo entre muitos casos raros.

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  8. Ah falta elogiar ... Esqueci-me, lol.
    Está muito perceptivel e directo, tocou-me.
    :)

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  9. Papinha,

    Obrigada a ti pelas palavras que deixaste :)

    Beijos :)

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  10. I.D.Pena,

    É verdade. É uma história com lados diferentes, mais ou menos triste ou feliz dependendo de quem a vê ou vive... como é tudo na vida.
    E dentro do coração de cada um, só cada um é que, verdadeiramente, está.

    "Está muito perceptivel e directo, tocou-me."

    Foi bom saber disso :)

    Beijos :)

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  11. Mtheman,

    Foste simpático sim senhor ;)

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  12. Gostei!

    Mas o problema destas histórias multifacetadas, com vários capítulos anteriores, é que nos fazem perder um pouco o fio à meada... ;)

    (não te acanhes, que há quem tenha escrito 20 ou mais capítulos, mas aí a minha dúvida é: porque não tentam publicar numa editora?)

    Beijocas!

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  13. Teté,

    Escrevi a primeira num repente, há uns dias. (Uma vida).
    Os comentários é que me fizeram pensar que poderia escrever uma segunda.
    Os da segunda fizeram-me imaginar uma terceira, lol.
    Não era nada planeado mas gostei muito deste exercicio.
    Agora já só se fosse mesmo a história do ponto de vista do cavalo, eheheheheh.

    Se quiseres compreender melhor, lê por ordem cronológica: Uma vida, Uma vida II e finalmente esta. (Se bem que o efeito "final inesperado" já o perdeste :(

    De qualquer modo, gosto muito de escrever e tenho gostado muito dos comentários, o teu incluido :)

    Beijos :)

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  14. Maravilhoso este final, não sei que mais dizer apenas me ocorre dizer que está muito bom:)

    Os meus parabens, que para chegar a este final já andei para tras para ler os 2 anteriores, e como poderás facilmente ver, li de seguidinha os 3.

    Muito bom

    Bjs

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  15. Minhoca,

    Quando imaginei uma terceira parte para o que já não era suposto ter tido uma segunda, lol (como, aliás já o tinha dito à Teté), imaginei que teria de ser menos óbvia do que aquilo que se poderia esperar... e saiu assim: a que poderia ter sido a mais amargurada, afinal, foi a que melhor aproveitou a vida :):):)

    Já vi que leste para trás, já te respondi aos comentários até; só te irei repetir que gostei muito de saber que gostaste (eu também gostei de as escrever :).
    Pronto, estou babada de novo!

    Beijos :)

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  16. Carloressu,

    Hum... arrepiar é bom!

    Beijos :)

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  17. Pax, desculpa mas vou copiar o Fatifer (desculpa Fat), mas tb eu li de um fôlego...

    Que sensação que causas com estes textos. Espero que seja tua intenção continuares.

    PS: Ainda vou imprimir os textos e fazer o livro da Pax, para ter num cantinho lá em casa.

    Beijinhos querida

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  18. Patrícia,

    Assim deixas-me "sêm jeito, né?"
    :)
    Olha, eu adorei escrever assim desta maneira... assim... p'ró... pois... coiso.
    :)
    E também adorei que tenhas gostado.
    Pode ser que um dia me dê para escrever mais algo assim... coiso ;)

    Também te tenho guardada numa página de um livro: o da amizade.

    Obrigada pela opinião e pelo carinho :)

    Beijos :)

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  19. Está muito bom, o contraste com os outros textos é que é assustador.

    Comparar estes 3 textos com o da ovelha é no minimo estranho. ahahahah

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  20. Oh linda, disseram tudo em cima, está de facto incrivel, devias continuar a escrever.;)

    Lindo!

    Beijo linda

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  21. Crest,

    "Está muito bom, o contraste com os outros textos é que é assustador."

    Espero que tenha sido assustador só pela positiva :)

    "Comparar estes 3 textos com o da ovelha é no minimo estranho. ahahahah"

    Às tantas ainda vamos descobrir aqui a minha múltipla personalidade, ahahahahah.
    (Chiça, bate na madeira ;)

    Obrigadaaa, tu sabes o quanto valorizo também a tua opinião :)

    Beijos :)

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  22. Vita,

    Linda és tu e gostei muito de saber que também gostaste :)

    I will!

    Beijos :)

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  23. Crest,

    (Esqueci-me de te perguntar)

    - Percebeste o que é um final "à Crest"?

    ;)

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  24. Patrícia,

    (se o fizeste, como eu, lá porque disse primeiro tens todo o direito de o dizer também! De qualquer forma)
    Para elogiar a Pax, podes copiar à vontade ;)

    Também espero que a Pax nos continue a brindar com estas pérolas, sempre que assim o deseje.

    Beijinhos,
    FATifer

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  25. Adorei adorei adorei, quase mais que o roxo eheheheh!!!

    Sabes, descreves na perfeição retratos de muitas vidas...mulheres que se dedicaram a homens que nunca foram verdadeiramente delas mas que só aquela migalhinha chegou para sonhar uma vida inteira! Quando eles morrem passa a ser um alivio.
    Soube de histórias da vida real em que no velório aparecia a mulher e uma mulher misteriosa...que nesse dia se sabia que era a tal, a amante, a silenciosa, a escondida que passou a vida inteira a ser a outra e mesmo assim chegou-lhe.

    Há por ai fora com cada vida :(!

    Abreijinhos linda e continua a escrever assim ;)

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  26. Pax disse...

    "- Percebeste o que é um final "à Crest"?"

    Nao. Pois um final à Crest parece-me ser o que faz sentido na altura e o teu final, faz sentido. Nao sou a melhor pessoa para catalogar finais à Crest :)

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  27. Afrodite,

    É isso mesmo.
    Muitas histórias dessas haverá, de mulheres e homens que, por motivos vários, toda a vida se esconderam e sofreram em silêncio por não terem por inteiro aquilo que gostariam de ter.
    Muitos e muitas nem ao velório ou funeral da pessoa que amaram poderão ir, exactamente por serem a/o outra/o. Também não deve ser fácil sofrer sem sequer o poder demonstrar.

    "Adorei adorei adorei, quase mais que o roxo eheheheh!!!"

    Esse será um amor até que o fim das pilhas vos separe! Lol.

    Beijos :)

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  28. Crest,

    O meu conceito de final "à Crest" é de um final menos esperado do que aquele que o inicio faria prever...

    :)

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