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O calculismo aplicado às emoções é uma das coisas mais inúteis, ridículas, incoerentes e que mais as podem prejudicar!
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Há uma prática que me apraz sobremaneira observar: o jogo do deixa-cá-fingir-que-não-mas-estou-mortinho/a-para-lhe-ligar!
É aquele jogo em que cada um se acha mais inteligente do que o outro e cada um faz questão de ser o predador e de que o outro seja a presa, sem se aperceberem de que quando morderem, mordem a própria cauda, de tanto que andam à roda!
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Um exemplo mais concreto:
Fulano conhece fulana na night e vice-versa. Ela agrada-lhe de todas as formas possíveis, como havia muito ninguém o fazia e ela sente exactamente igual. Trocam conversas, sorrisos e olhares. Guardam vontades e desejos.
Darão a entender o que sentem?
Não! Que nunca se dá nada antes da certeza de haver algo para se levar em troca!
Fulano não quer parecer que anda à procura de alguma coisa (até porque não anda e sabe bem o seu enooorme valor) e fulana não quer parecer desesperada (até porque não está e também sabe bem o seu enooorme valor).
Fulano e fulana partilham números de telefone como algo perfeitamente ocasional, como simulam fazer com qualquer pessoa, até porque nenhum aparenta que se lembrará de que o fez, depois de uma noite de sono.
Fulano vai para casa e tem dificuldade em adormecer. Pensa em como aquela mulher o fascinou e em como poderia ter acabado a noite ou algo mais...
Fulana vai para casa e não consegue dormir. Pensa em como aquele homem é fascinante e em como poderia ter começado a noite ou algo mais...
Dia seguinte: fulano já olhou para o número umas 948 vezes e fulana finge que não se lembrou de lhe ligar outras tantas.
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Fulano pensa que se ela tiver interesse que lhe ligue!
Fulana pensa que se ele tiver interesse que lhe ligue!
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Eles até ligariam, mas... no dia seguinte seria demonstrar demasiado interesse. E isso iria, certamente, desinteressar o outro. Talvez daí a duas semanas. Não! Duas semanas seriam um excesso porque pareceria mesmo desinteresse!
Uma semana! Isso! Caso não liguem (mas que raio de merda se o outro não liga), ligar-se-ão daí por uma semana! Não! Isso seria demasiado óbvio, pareceria que tinham contado os dias. Uma semana, um dia, oito horas e vinte minutos! Assim sim, parece perfeitamente ocasional!
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Fulano e fulana torcem-se e contorcem-se numa luta diária do «deixa cá ver se é hoje que liga, que não, não serei eu quem lhe vai ligar!».
Sete dias depois o telefone dela toca e como já tinha passado seis dias a correr em vão, desta vez nem se lembra que pode ser ele. Mas é! E ela tenta que a voz não traga emoção: «Quem?» (É ele, é ele, é ele!) «Ahh... sim... acho que sim... lembro... sim...» (Ligou, ligou, ligou!) «Amanh...ã...ã...» (Lembrou-se, lembrou-se, lembrou-se!) «Pois... pode ser... acho que posso, sim» (Yupi, yupi, yupi!).
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Ele desliga achando que a fulana é uma convencida e o interesse de sentido único. Foi estúpido! Provavelmente estará no final de uma longa fila de interessados. Seria mais um com quem ela iria intercalando os tempos mortos. Pensando bem, afinal, já não lhe interessa assim tanto. Sabe que o tempo lhe atenuará a vontade. Não é a primeira vez, não será a última.
Amanhã inventará uma urgência no trabalho a nunca mais a verá!
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Onde terá ficado a simplicidade e a sinceridade de um «adorava ver-te de novo», de um «gosto-te», de um «apeteces-me», de um «quero-te»?
Que foi feito do impulso, do repente, da surpresa?
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O "Forrest Gump" sempre foi um dos meus filmes preferidos. Em grande parte por isso mesmo: pela minha admiração pela simplicidade e incapacidade para o calculismo ou jogo que algumas pessoas têm. Pelo exemplo, pela raridade da faculdade que possuem: serem, fazerem e dizerem exactamente aquilo que lhes vai na alma, no segundo que lhes passa a alma. Nunca perdem o momento. Não ficarão presas no "como seria se...".
Ainda que alguns as vejam como desajustadas, essas pessoas são as que nunca perderam o toque de algo que lhes tenha apetecido tocar, o cheiro do que lhes apeteceu cheirar e a oportunidade de terem tudo aquilo que desejaram possuir pois, ainda que não o tenham conquistado, viverão bem com isso, pois sabem que não foi por não terem pugnado ou dito que o queriam!
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