terça-feira, 9 de dezembro de 2008

Parte V


- Bem-vinda a casa minha filha.
- Obrigado meu pai.
- O tempo passa a correr, não é?
- Eu não te disse, um mês passou num instante.
- E então, que me dizes dessa viagem?
- É ainda mais lindo do que imaginava!
- Eu não te disse? Mas vai tomar um banho e já falamos…
- Vou sim, são horas a mais dentro de um avião…

Estava feliz por ter a filha de volta, perto dele. Sentira falta daquele brilho no olhar. Agora a casa já não parecia tão vazia, a luz voltara.
Decide ir dar uma volta pelo jardim… senta-se no banco de mármore à sombra da velha nogueira que o sogro tanto apreciava. Havia quem dissesse que tinha comprado aquela casa por causa daquela árvore. Gostava de estar ali a ouvir os chilrear dos pássaros e a sentir o cheiro inebriante dos rosas… de repente parece ter regressado atrás no tempo…

- Isabel?
- Não, sou eu meu pai…
- Minha filha…
- Sou assim tão parecida com a minha mãe?
- Com esse vestido então…
- Fui buscá-lo ao roupeiro dela, é tão lindo…
- Pois é, ainda me lembro do dia em que lho ofereci… fica-te quase tão bem como a ela.
- Quase?
- Sim filha, esse vestido foi feito para ela e tu és um nadinha mais alta…
- Oh pai!
- O que te chamei quando te vi?
- Entendi meu pai…
- Por alguma razão a Sofia já me disse várias vezes que pareces a reencarnação dela.
- A Sofia…
- Não comeces, porque fui eu falar na Sofia?...
- Porque a Sofia é uma pessoa tão especial como era a mãe. E tu gostas dela, ao ponto de ouvires o que diz…
- Sim…
- Por isso insisto na ideia meu pai…
- Meu anjo, quantas vezes terei de dizer que a tua mãe foi e é, a única mulher que alguma vez amarei…
- Eu sei, ela está aí nesse cofre que carregas no peito e que tantas vezes te pedi para voltares a abrir!
- Helena…

Pega na mão da filha e acena-lhe para o seguir. Sobem a escadaria branca, entram em casa, atravessam o salão e sobem ao primeiro andar. Entram no quarto dele. A filha não percebe porquê o pai se dirige a uma parede. Ele toca em algo que ela não vê o quê e abra-se uma porta. Entram os dois para uma divisão pequena com uma decoração antiga. Numa escrivaninha está pousada uma caixa de prata rectangular. Senta-se numa das cadeiras e a filha na outra. Tira do bolso uma pequena chave com que abre a caixa. Lá dentro vêm-se dois envelopes amarelecidos pelo tempo. Abre o envelope que está em cima e retira uma folha manuscrita. Lê pela milionésima vez mas a primeira em voz alta, para filha ouvir:

“Guilherme,

Se estás a ler isto deixei-te… não por minha vontade mas porque alguma força maior assim o quis. Por mim ficaria a teu lado eternamente.

Sabes que não sou destas coisas mas tenho dois desejos:

Primeiro, continua a viver a tua vida. Sei que não me esquecerás, como eu não te esqueço a ti mas por isso mesmo, vive por mim…

Segundo, sabes o que penso da morte, faz o que sempre te pedi… naquela ponta onde a terra acaba e o mar começa, quero voar…


Por fim, porque nunca to disse, por palavras, escrevo-o aqui:

Amo-te


Sempre tua,
Isabel

PS – Cuida bem da nossa Helena meu amor.”


O PS tinha sido acrescentado, notava-se a diferença na tinta… recorda o dia, um ano depois do casamento, em que ambos tinham escrito aquelas cartas. A ideia fora dela, como brincadeira; a sua permanecia ali, por abrir…

- Meu pai, a minha mãe concorda comigo!
- Eu sei…
- Porque me mostrou isto só agora?
- Não sei… talvez porque há coisas que temos a mania que devemos guardar só para nós.
- Pai… o que queria dizer a minha mãe com o segundo desejo?
- Amanhã mostro-te.
- Amanhã?
- Sim, amanhã. Lembras-te que dia é amanhã?
- Amanhã?... ah sim…
- Amanhã vais comigo e vais saber onde vou todos os anos.

Ela olha o pai procurando nos seus olhos respostas mas o olhar dele está distante…
Guarda de volta a carta no envelope e o envelope na caixa, que fecha com a chave. Levantam-se e saem daquela divisão secreta.

Esta é sempre a noite mais dolorosa do ano, aquela em que é impossível deixar de recordar.
Todos os anos passa esta noite em branco, já se tornou um ritual. É a noite em que ela o deixou e por isso não consegue dormir. Recorda como naquela noite bateram à porta, já tarde. O Alfredo, fiel mordomo da família, bateu à porta do escritório:

- Sim?
- Sr. Eng. estão aqui dois agentes que querem falar consigo.
- Dois agentes?
- Sim Sr. Engenheiro, polícias.
- Polícias? Disseram do que se trata?
- Não Sr. Eng., apenas disseram que pretendem falar consigo.
- Muito bem… peça-lhe que entrem, por favor.
- Com certeza.
- Obrigado Alfredo.

Nunca esqueceu aqueles dois homens, um alto outro baixo e gordo que entraram com ar grave e cara fechada no seu escritório, naquela noite…

- Boa noite Srs., em que posso ajudá-los?
- Boa noite.
- Boa noite, Sr. Guilherme Manuel Costa Silveira?
- Sim, sou eu.
- Esposo da Sra. Isabel McDauglish Nogueira Silveira?
- Sim.
- Agente Silvino e este é o meu colega o agente Pereira. Lamento informá-lo que a sua esposa sofreu um acidente.
- Como?
- Não é proprietário de um Jaguar E de matrícula AF-37-52?
- Sim… é o carro da minha esposa.
- Então… esse veículo esteve envolvido num acidente…
- …
- Era a sua esposa que conduzia o veículo?
- Sim… ela foi ao Porto visitar uma amiga.
- O veículo em questão sofreu um embate frontal com um camião ao quilómetro 107 da nacional 1.
- Embate frontal? … com um camião?!...
-Sim parece que o condutor do camião adormeceu ao volante.
- ….
- Ambos os condutores tiveram morte imediata.
- É necessário vir alguém reconhecer o corpo. Lamento a sua perda.
- …


Recusa-se, até hoje, a recordar o que viu no instituto de medicina legal… não era a sua Isabel… era só um corpo ensanguentado numa marquesa fria… quando levantaram o lençol mal foi capaz do aceno de confirmação, não podia acreditar… como seria possível? Estava incrédulo, sem reacção, não conseguia sequer chorar, não proferiu uma palavra… parecia que a sua vida tinha parado ali como ele estava, imóvel, diante daquela marquesa.

Está sentado no cadeirão de couro quando a filha chega com uma bandeja.

- Passou a noite em branco mais uma vez meu pai?
- Sim filha…
- Quando vai acabar este seu ritual?
- Não sei….nunca talvez.
- Coma qual quer coisa.
- Obrigado.

Bebeu o copo de água e depois um pouco de leite com café… a custo comeu o pastel de Belém.
Levantou-se…

- Vamos?
- Vamos onde meu pai?
- Não te disse que vinhas comigo hoje?
- Sim…
- Então vamos…

Descem à garagem e entram no DB4GT. O som do motor ainda ecoa no jardim quando saem o portão.
Durante todo o percurso até ao cabo da roca, só o som do motor e o chiar dos pneus, em algumas curvas, interrompe o silêncio, entre eles nem uma palavra.
Chegaram, saem do carro e dirigem-se à ponta onde a terra acaba…

- Foi aqui que as cinzas da tua mãe voaram, como desejava…
- O quê? Que dizer que a urna no jazigo da família está vazia?
- Sim…
- …
- Leste como era sua vontade…
- … sim… mas…
- A tua mãe, tal como eu, nunca gostou de cemitérios, culto dos mortos…
- Sim meu pai, eu sei… mas … as vezes que falei com ela naquele lugar…
- Se falaste com ela… o que importa se as cinzas estavam lá ou não?
- Importa porque… sim… talvez tenhas razão mas já me devias ter dito!
- Sim, eu sei… desculpa.
- Por isso sempre falas deste lugar como sendo especial, agora compreendo o porquê…
- …

Helena olha nos olhos do pai e coloca, em seguida, a cabeça no seu peito. Ele abraça-a. Ficam ali a olhar o mar de mãos dadas, a sentir aquele vento que vem do mar, ouvido o rugir das ondas nas rochas lá em baixo…


(continua)


FATifer

9 comentários:

  1. Olha, tenho de te dizer que esse homem merece o sogro que tinha!
    Não se consegue libertar dos fantasmas, não se dá ao direito de ser feliz nem conseguirá nunca fazer ninguém feliz (nem a filha) enquanto não se libertar!
    Está a precisar de algo, vê lá se não será a tal parte que me prometeste ;)
    (Se bem que na idade dele já deve ter perdido umas faculdades que jamais recuperará... burro!)

    (Estou mesmo curiosa para ver onde isto leva, que esse homem está a precisar de uns abanões a ver se acorda).

    Beijos :)

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  2. Cara Pax,

    Isto de começar a tirar morais da história a meio não vale!! (repito-me mas tenho de voltar a dizer que adoro como consegues ler o que estou a tentar transmitir) :)

    “Está a precisar de algo, vê lá se não será a tal parte que me prometeste ;)”
    Está a tornar-se uma obsessão tua essa “promessa” (que não fiz) …
    (temo que te vá desiludir mas tentarei…)

    “(Se bem que na idade dele já deve ter perdido umas faculdades que jamais recuperará... burro!)”
    Mazinha!! :P

    “(Estou mesmo curiosa para ver onde isto leva, que esse homem está a precisar de uns abanões a ver se acorda).”
    Estou num impasse criativo exactamente por não saber que volta dar (ao “monstro” que criei)… apresentam-se-me várias hipóteses e estou indeciso qual devo escolher…

    Beijinhos,
    FATifer

    PS – não estranhes a hora desta resposta, estou de férias esta semana.

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  3. Bom, tenho seguido o desenrolar da história, mas não tenho comentado porque não quero perturbar a tua veia inspiradora, nem influenciar-te com uma eventual crítica.

    De qualquer forma as opções que tomaste são arrojadas, que a construção de histórias paralelas está longe de ser fácil... Para além de um protagonista cinquentão a viver no (e do) passado também não constituir o típico herói romanesco.

    Continua! Darei a minha opinião sincera no final. Como mera leitora, está claro!

    Beijocas!

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  4. Teté,

    “Bom, tenho seguido o desenrolar da história, mas não tenho comentado porque não quero perturbar a tua veia inspiradora, nem influenciar-te com uma eventual crítica.”

    Pois até compreendo mas, sinceramente, até tenho sentido a falta de algum feedback (ok a Pax, o Crest©, etc até se têm manifestado, é verdade). Quanto a influenciares-me, não te preocupes. Como deves ter notado, embora tenha concordado com o Crest©, que a parte IV estava um pouco novela, não foi por isso que esta não tem o seu quê de melodramático também ;)

    “De qualquer forma as opções que tomaste são arrojadas”
    :)

    “Continua! Darei a minha opinião sincera no final. Como mera leitora, está claro!”

    Se preferes assim… a opinião sincera de quem lê é o que pretendo. Como já disse noutros comentários, se não pretendesse a opinião de quem lê escrevia para mim, não publicava aqui. Não sou escritor nem pretendo ser, apenas escrevo quando e porque me apetece… se gostarem de ler tanto melhor. ;)

    Beijinhos e obrigado por leres,
    FATifer

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  5. "adoro como consegues ler o que estou a tentar transmitir) :)"

    E eu adoro tentar ler para além do "legível", embora nem sempre o consiga :)

    "Está a tornar-se uma obsessão tua essa “promessa” (que não fiz)"

    Foi uma semi-promessa :) mas vou tentar não insistir.

    "Mazinha!!"

    Mazinha?! Eu sempre tive a teoria que queca que se perde jamais se recupera! (Embora eu também já tenha perdido muitas, eheheh).

    "apresentam-se-me várias hipóteses e estou indeciso qual devo escolher…"

    Eu resolvia-lhe o assunto com uma boa qu... humm... pois, confio na tua opção :)

    :)

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  6. Ah!

    "PS – não estranhes a hora desta resposta, estou de férias esta semana."

    Já tinha reparado e já tinha estranhado :)
    Ainda bem que é por um bom motivo!
    Boas férias!
    :)

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  7. Pax,

    “E eu adoro tentar ler para além do "legível", embora nem sempre o consiga :)”

    Por vezes vês sentidos em coisas que escrevi, que nem eu tinha visto! ;)


    “Eu sempre tive a teoria que queca que se perde jamais se recupera!”

    Boa teoria essa… terei de concordar…


    “Eu resolvia-lhe o assunto com uma boa qu... humm... pois, confio na tua opção :)”

    Ias tentar não insistir, o que não significa conseguir não é?:P

    Bem vou escrever a parte VI…

    Beijinhos,
    FATifer

    PS – “Boas férias!”, obrigado.

    ResponderEliminar
  8. "Por vezes vês sentidos em coisas que escrevi, que nem eu tinha visto! ;)"

    Se isso é bom, fico contente :)

    "Ias tentar não insistir, o que não significa conseguir não é?:P "

    Exactamente!
    E até aposto comigo mesma que não será a última vez que te lembro disso ;)

    Até já :)

    ResponderEliminar
  9. Pax,

    “Se isso é bom, fico contente :)”

    Claro que é bom! ;)

    “Exactamente!
    E até aposto comigo mesma que não será a última vez que te lembro disso ;)”

    Eu sei :)

    Beijinhos,
    FATifer

    ResponderEliminar

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